Manhã fria, gelo no chão, uma camada bem fininha. Mas fazia crec crec sob as botas dele. Ele gostava de andar assim, sozinho, escutando os barulhos da manhã e do frio. Cheio de roupas pra se aquecer, andava nem rápido nem de vagar. Distraído. Só ligava o aparelho e colocava os fones quando entrava no ônibus. Ouvir as pessoas tagarelando o martirizava, principalmente a velha que pregava a Bíblia. Ia para o trabalho todos os dias assim. O primeiro emprego. Não era grande coisa, mas gostava porque podia mexer a vontade no computador, e não precisava atender as pessoas na recepção. A mocinha feiosa e a mulher mais velha que trabalhavam lá competiam nisso e ele ficava feliz por ficar longe delas.
-Moço! Que horas são?
Olhou espantado para a moça de cabelos pretos e touca branca. O cabelo ia até o queixo dela e virava as pontas pra frente.”De onde ela veio?” Perguntou a si mesmo, antes de responder sua pergunta.
-Quase 8h30.
-Ah! Então dá tempo! E ela abriu um sorriso imenso.-Nós vamos juntos!
-É? Ficou se sentindo bobo depois disso, mas quem não ficaria bobo diante de uma moça tão bonita? Sentia-se se perder dentro do sorriso dela.
-É! E riu uma risada de gente de bom coração.
O ônibus chegou e ela entrou primeiro, olhando arteira para ele, sempre sorrindo. O percurso era rápido, uns 10 minutos. Conversaram, ela contou a ele que morava em outra cidade, estivera ali de passeio apenas. E que agora estava indo para outro lugar, longe dali.
Ele pensou que era mesmo muita sorte para um cara como ele. Imagina se uma menina tão especial cairia do céu para ele assim, do nada e ficaria com ele ainda por cima! Deviam ser as tais brincadeiras dos deuses que a avó falava tanto.
-Por que você ta com essa cara triste?
-Nada...
-Ah! Eu não paro de falar não é? Te aborreci...
-Não! Sua voz é lin...da...podia ficar ouvindo você falar pro resto da vida...
-Vamos descer?
Ele viu que já chegara o seu ponto, devia descer do ônibus.
-Mas você vai descer aqui também?
-Sim! Eu disse que nós vamos juntos!
-Você sempre ri desse jeito?
-Sempre! Eu sou feliz! E você vai ser também!
Ele achava que tudo aquilo era a coisa mais estranha que já tivera em sua vida. Mas era também a melhor. O que será que ela iria fazer ali, exatamente no mesmo lugar onde ele trabalhava?
Entraram juntos pelos grandes portões. Era uma das construções mais antigas da cidade. O Cemitério Municipal.
-Bom, eu tenho que entrar...trabalho na secretaria.
-Eu sei! Já te vi lá!
-Como? Nunca te vi antes.
-Mas eu já te vi muitas vezes! Sempre passo por ali! Mas agora vai! Daqui a pouco a gente se vê de novo...
Renato a olhou como se não acreditasse em nada daquilo.
-Prometo! Daqui a pouco a gente se vê de novo!
Ela se foi rindo, dando pulinhos como se estivesse realmente muito feliz.Ele acabou rindo e entrando na secretaria. Passou pelo espaço no balcão, e foi se dirigindo para os fundos.
-Filho! Pode me ajudar?
Um homem com uma blusa bege e um casaco verde, de suíças no rosto, colocou um embrulho em cima do balcão.
-Pode me ajudar?
-A moça já vem atender o senhor.
-É só uma foto! Quero trocar a foto da minha filha. A que está lá no túmulo já está meio velhinha. Ela gostava tanto de tirar fotografias. Já está na hora de trocar por outra. Tenho tantas.
Ele se compadeceu do homem. E aquela era uma manhã tão boa, que podia atender a alguém que certamente havia perdido uma filha cedo demais, pois ele era uma homem novo ainda.
-Minha filha tinha 15 anos sabe? Veio passear pra cá. Me visitar. Somos separados, eu e a mãe dela. Pobrezinha, era tão cheia de vida! Tão feliz, sempre sorridente Afogou-se há cinco anos.
-Que pena. Mas o senhor precisa de ajuda para ir até lá? Até o tú...mulo...Sentiu-se desconfortável falando assim.A dor alheia o incomodava como sendo sua também.
-Não! Posso ir sozinho! Mas antes vou te mostrar a minha Mariza!
O pai ia abrindo o embrulho, tirando a foto da moça e Renato foi sentindo algo estranho, como um formigamento no peito.
-Pronto! Olhe! Não é uma beleza a minha filha?
O rapaz sentiu o coração arrebentar dentro do peito. Uma dor alucinante estourava suas veias enquanto olhava o rosto na foto. O mesmo rosto da moça que o acompanhara no ônibus ainda há pouco.
-Mas...o que houve? Você não está se sentindo bem?
Ele sentiu um clarão de luz dentro do cérebro e caiu no chão.
-Mas o que houve? Cléria, a atendente da secretaria entrava.
-Ele começou a passar mal e caiu no chão. Acho que teve um ataque cardíaco!
A mulher chegou perto dele, colocou a mão em seu rosto, sentiu a pulsação.
-Meu Deus! Ele está morto!
**
-Eu disse que nos veríamos logo, você não acreditou!
-Ainda estou tonto.
-É normal, é assim mesmo! Quando aconteceu comigo, fiquei um tempão tontinha também.
Ele chacoalhou a cabeça, como para desembaraçar os pensamentos.
-Mas o que está acontecendo?
-Ei? Vamos!
-Pra onde?
-Pra qualquer lugar! Eu estava só te esperando! Agora a gente pode ir pra onde quiser!
Ela segurou a mão dele, ainda tonto, e foi puxando-o pelo caminho. Seria assim por muito tempo ainda. Sempre rindo, ensinaria o rapaz quieto e triste em vida, a rir e a se divertir, na morte. Juntos.
Engraçado. Já me aconteceu algo semelhante, mas eu nem morri. E a aparição continuou aparecendo durante algumas semanas no meu ônibus...
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