quinta-feira, 8 de julho de 2010

Aqui.

Sempre aquela música em sua cabeça. Sempre nos seus lábios, como assovio. Gostava de assoviar, de cantar em lalas. Uma música não muito antiga, mas que a acompanhava há muito tempo. Música boa, de banda boa. Rock’n’rolll. Uma baladinha esta. Triste, falando sobre alguém com dor. E um outro alguém, disposto a ajudar.
Julia chega em casa cheia de compras. Abre a porta com dificuldade, equilibrando os pacotes, segura a alça da bolsa com os dentes, depois que pegou a chave de dentro dela não conseguiu por a alça de novo nos ombros. Essas coisas sempre são confusas pra ela. Sempre foi confusa. Não desastrada. Confusa. Não sabia nunca ao certo como fazer e refazer coisas triviais. Achava graça disso ao invés de se importar. Era uma moça feliz. Entrou em casa, colocou as compras em cima da mesa, a bolsa também saiu de seus dentes deixando-os doloridos e a boca com gosto de couro. Suspirou fundo. Suspirosa era como a avó lhe chamava desde menina.
Pensou em fazer algo para comer, havia passado o dia todo fora, nem havia comido nada além das poucas bolachas e do copo de chocolate matinal. Mas estava tão cansada que se deitou no sofá amarelo de tecido fofo e quente.”Como ando cansada”, pensou. Já fazia tempo que chegava em casa e imediatamente caia em sono profundo em qualquer lugar em que encostasse. Chegava animada, bem disposta, sempre com planos para fazer comidas deliciosas, tirar coisas velhas dos armários, arrumar a casa. Mas assim que entrava, sentia-se doente de cansaço. Ainda bem que havia a arrumadeira que vinha uma vez por semana cuidar da limpeza e das roupas, senão viveria numa bagunça mal-cheirosa, pensou rindo e dormiu.
Acordou assustada, sempre acordava assim, com pesadelos alfinetando sua mente e sem lembrar de muita coisa deles. Apenas os enormes olhos vermelhos. Desde criança sempre tivera sonhos com esses olhos. Devia ser algum personagem de desenho ou de algum livro que vira, e que a assustara tanto, que nunca mais em algum lugar de sua mente esquecera. Só lembrava nos pesadelos. Estava escuro, pois quando chegou em casa dormiu sem acender nenhuma luz. Estava com frio com exceção das costas que estavam no quentinho do tecido do sofá. “Ah! Que pena que não trouxe um cobertor pra cá, poderia continuar dormindo”.Mas o frio começou a incomodá-la. Não tinha um medo especial do escuro. Recentemente foi que começou a senti-lo como pesado e gelado. Era estranho isso pensava.Colocou os pés no chão e puxou-os imediatamente pra cima do sofá num “ah!”, assustado. Pareceu sentir um raspão. Como uma unha grande sendo passada em cima do pé esquerdo. “Será um inseto?” Tinha horror à centopéias, ficou alisando o pé, horrorizada com a idéia. “Que ódio!”, essa era outra palavra que andava usando com freqüência recentemente. Não era dada ao uso de palavras negativas assim. “Que inferno! Por que ando fazendo isso? O sofá vai acabar com um buraco nesse lugar de tanto que durmo aqui. Ai que fome!” Ouviu um estalo.
-Deve ser a geladeira, disse para sim mesma. Encolheu-se mais ainda no sofá de que tanto gostava. Presente de um tio. Casa nova, móveis novos! Dissera ele quando Julia resolvera morar sozinha e procurava em lojas de segunda mão móveis para encher a casa. O sofá era o único móvel novinho em folha que possuía. E de sua cor favorita.Tentou acalmar-se cantando baixinho a música de sempre. Ouviu o carrilhão antigo batendo e se assustou novamente. Gritou um palavrão e ficou escutando as batidas para saber que horas eram. Uma, duas...Doze? Impossível! “Não posso ter dormido tanto!”, Chegou em casa as 5h30. “Meu Deus!”.
-Deus não tem nada com isso gracinha.
O grito não saiu quando sentiu o coração gelar. A escuridão era absoluta!
-To ficando louca.
-Canta pra mim...A voz rouca, como enferrujada pediu.
-Quem ta aí? Olha, pode levar o que quiser!
-Quem disse que eu quero mais do que já tenho?
-Eu vou chamar a polícia! Ta me escutando? Ta ouvindo? Sai daqui agora! Pega o que quiser e sai agora porque já to ligando,
Procurou o telefone celular no bolso da calça, pensando em porque não tivera a idéia de usá-lo como lanterna antes, assim que acordou. Não conseguia tirá-lo, deixou cair no chão.
-Droga, bosta!
Começou a tatear pelo chão a procura do aparelho, achou-o. Mas quando o abriu continuou tudo escuro. Sem bateria. Apavorou-se ainda mais no silêncio.
Respirava com dificuldade imaginado que poderia ser tocada a qualquer momento pelo sujeito que estava ali. Era uma voz de homem não era? Uma voz velha, como se raspasse em ferro velho. Lembrou que o interruptor de luz estava perto da porta, e perto do sofá havia um abajur. Tentou ser silenciosa, segurou o medo dentro do estomago enjoado e estendeu o braço para a direita, procurando pelo abajur com base em forma de elefante. Pegou o rabinho dele e clic! Escuro ainda. “O fio deve ter se desprendido, porcaria de coisa velha!”, pensou. “Vou ter que levantar daqui e ir até a porta. Acendo a luz e abro aporta e saio correndo." Pensou no ridículo da situação, mas sabia que sem a luz acesa não conseguiria girar a chave na porta trancada. Suas mãos tremiam. Já seria um esforço supremo chegar até o interruptor sem tropeçar em nada. Levantou-se num pulo e correu em direção a luz, começou a tatear a parede, achou, e nada. Escuro total.
-Não vai cantar pra mim? A voz horrenda debochou.
Sentiu que ia desmaiar. Foi escorregando pela parede, caindo até o chão gelado. Não soube quanto tempo ficou ali, gelada e grudada na parede. Voltou do desmaio e ainda zonza pensou “o que to fazendo aqui? Deve ser um pesadelo”.Ouvindo estomago roncar. O único som na escuridão.
-Tenho que ir pra cama. Preciso de um médico. Isso tem que parar. Esses pesadelos idiotas...Chega de palhaçada Julia! Levante-se daqui!
Dando a ordem pra si mesma, tentou se levantar. Sentiu-se fraca, as pernas bambas.
-Calma! Isso é fome...Só fome e cansaço e...
Tentou o interruptor novamente.
-É só falta de energia. Não seja boba! Algum imbecil deve ter batido o carro num poste aí.
Ouviu um suspiro. Arregalou os olhos.Mas se manteve muda. Pôs a mão na boca, cobrindo-a. A escuridão era tanta que se ela não via ninguém, certamente não era vista tampouco. No mesmo instante em que pensou isso, sentiu uma enorme mão acariciar-lhe os cabelos vermelhos.Sentiu um arrepio medonho descendo-lhe da cabeça aos pés, tremeu, girou e estendeu as mãos tentado se defender, caiu no chão e começou a empurrar a si mesma para trás com os pés, chorando.
-Por que você ta fazendo isso? Me deixa em paz!
-Gostooosa...Caaanta pra mim...
Julia foi batendo em móveis, derrubando objetos, levantou-se e começou a procurar pela cozinha, completamente sem direção. Havia uma porta na cozinha, queria alcançá-la. Achou a escrivaninha, uma dor aguda no osso da bacia onde bateu de cheio na quina. Gritou de dor. Mas já sabia onde estava, era só andar um pouco pela direita que já encontraria a porta da cozinha e dali a porta de saída. “Desgraçado, se pensa que vou ficar aqui pra você ta muito enganado. Prefiro morrer do que ser estuprada por uma coisa imunda como você!”
-Toco em você todas as noites benzinho...E o prazer que te dou te faz acordar assustada. E eu adoooro isso...A risada metálica do sujeito fez Julia quase desmaiar de novo. Havia apenas pensado, tinha certeza de não ter dito nada em voz alta. O terror tomou conta de todas as suas células. “Essa coisa não é humana.” Entendeu isso com um conhecimento antigo, que todos nós temos enraizado dentro de nós. O conhecimento do sobrenatural. Do mal. O rádio-relógio e cima do armário, lembrança da década de 90, acendeu a luz piscando 12:00. Seus olhos se voltaram pra luz vermelha e deu um salto quando o rádio começou um chiado e de repente, ouviu aparvalhada a música de sempre enquanto corria para aporta dos fundos.
“Quando a chuva cai
Nas noites mais solitárias
Lembre-se que sempre
Estarei aqui...”
Na escuridão, apenas o piscar vermelho do rádio relógio, e os igualmente vermelhos e enormes olhos.



(Cai a Noite - Capital Inicial)

2 comentários:

  1. Ia te perguntar justamente algo sobre isso....faz parte de seu livro? Adoro este tipo de história. Lá mesmo no meu brogue eu já fiz uma...ficou um tanto extensa, mas não tão legal assim. E acho que ficou muito desorganizada a disposição dos textos, já que sempre alterno alguma lamúria no meio das ficções...

    Quero ver(ler) mais!

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  2. Ah, a propósito, não sou contra os profissionais da dita saúde humana não....sou contra planos de saúde só oferecerem uma consulta de 1/2 hora por mes....e por não oferecerem auxilio para outros tipos de caras da área, como pessicólogos e pessicanalistas. Eu sei que preciso deles. Sozinho não dou conta de resolver o cabeção não.

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